Pontualmente às 19 horas, os sinos da Igreja de Nossa Senhora de Brotas anunciam o início da missa. Como música para os meus ouvidos, relembro de um passado recente enquanto freqüentadora quase assídua de celebrações católicas. Vem à mente todo o clima de preparação para a missa: os ensaios dos cânticos, organização do ofertório, preces, emoção e fé.
Apesar de chegar em cima da hora, ainda pude encontrar um lugarzinho no final da igreja para acompanhar a Missa do Quarto Domingo de Páscoa. Um personagem inusitado me chama atenção: um senhor simpático, baixinho, de cabelos brancos e de óculos escuros, mesmo sendo noite. Sineiro da igreja há 40 anos, nem mesmo o senhor Jailton de Oliveira Pinto imagina como a história do bairro de Brotas está intimamente ligada com a influência da Igreja Católica durante a colonização de Salvador.
Para entender essa forte influência é preciso retornar ao passado, mais precisamente para o século XVI. Durante essa época, o governador-geral do Brasil era Mem de Sá, que realizou importantes fundações na colônia, entre elas, no ano de 1557, a povoação de São Paulo – que futuramente daria origem ao bairro.
Segundo o livro “Salvador – Transformações e Permanências”, de Pedro de Almeida Vasconcelos, a povoação foi fundada pelo jesuíta Manuel da Nóbrega, a serviço do governador, a partir da junção de quatro aldeias de índios, e contou ainda com a construção de uma igreja, o primeiro marco da influência na região.
Fé reconstrói Brotas
Muitos fiéis do bairro cantam hoje durante as missas “céus e terras passarão, mas sua palavra não passará”, sem imaginar que a força da Igreja conseguiu vencer as dificuldades durante a construção do bairro. Nem mesmo um surto de peste, que destruiu a aldeia, abalou a influência da fé, como explica Vasconcelos. A publicação afirma que a povoação foi restabelecida com a construção de uma nova igreja matriz no século XVIII, na região que hoje é conhecida como Cruz da Redenção.
O livro “Salvador – Transformações e Permanências” diz ainda que a região era rodeada de chácaras e grandes propriedades e, em 1757, segundo relatório de um vigário, a freguesia de Nossa Senhora de Brotas tinha 1045 almas. Já em 1872, a grande freguesia de Brotas tinha crescido para 5090 habitantes, sendo que 45% eram brancos, e havia 594 escravos na região. Ou seja, a igreja atraiu a população a construir suas casas ali.
Para atender à população que crescia, foram criadas algumas vias para ligar a freguesia a regiões importantes da cidade como as atuais avenidas Dom João VI e Waldemar Falcão. A ladeira dos Galés, construída em 1810 fazia a ligação entre Nazaré e Brotas, e servia como passagem de escravos para casarões nobres das Pitangueiras, segundo informações do site “O melhor de Brotas”.
Brotas é atualmente dividido em 10 regiões: Campinas de Brotas, Engenho Velho, Acupe, Cosme de Farias, Pitangueiras, Vila Laura, Luiz Anselmo, Candeal Pequeno e Horto Florestal e Matatu.
É no bairro de Brotas que se encontra a maior comunidade de congregações religiosas de Salvador. De acordo com a Arquidiocese de Salvador, além da igreja de Nossa Senhora de Brotas, o bairro conta ainda com mais sete paróquias distribuídas em suas subdivisões: Bom Jesus dos Milagres, no Largo dos Paranhos; Santa Rita de Cássia, na ladeira de Santa Rita; Santa Tereza D’Ávila, no Luiz Anselmo; Deus Menino, no Engenho Velho de Brotas; Nossa Senhora de Fátima, no Acupe; Santo Antônio, em Cosme de Farias e; Jesus de Nazaré, na Vila Laura.
Lenda lusitana
Percorrendo a região conhecida como a Cruz da Redenção, é possível identificar imediatamente a origem do nome do batismo do bairro. A imponente igreja matriz da Paróquia de Nossa Senhora de Brotas revela traços de uma herança lusitana, trazida pelos colonizadores desde a fundação, há quase 300 anos.
A antiga Capela de Nossa Senhora de Brotas do Caminho Grande tornou-se matriz em 1718, com um alvará do rei de Portugal, Dom João V a pedido do arcebispo Dom Sebastião Monteiro da Vide.
A padroeira do bairro é uma santa lusitana que tem uma Igreja Matriz no distrito de Évora, em Portugal. A história de um milagre alimenta a fé dos freqüentadores desse santuário. Uma lenda do imaginário português conta que próximo ao local onde foi erguida a igreja, um homem que morava na região vivia do leite que retirava de uma vaca de sua propriedade. Certo dia, ele a encontrou machucada e invocou imediatamente à Nossa Senhora de Grotas, que lhe apareceu com Jesus nos braços.
Acredita-se que o nome da santa tenha sido modificado com o passar dos anos, entre os populares, trocando o nome Grotas por Brotas.
Os sinos
Na matriz de Salvador, já como Brotas, uma figura importante também faz parte da história da igreja: o sineiro. Jailton de Oliveira Pinto nasceu na terra de Dona Canô – matriarca da família Velloso mãe de Caetano e Maria Bethânia –, Santo Amaro da Purificação, a 83 quilômetros de Salvador.
O sineiro trabalhava na roça e veio para a capital com 15 anos, junto com a família em busca de melhores condições de vida. Hoje, 54 anos depois, seu Jailton diz que começou a freqüentar a igreja por influência de sua mãe, que o levava para assistir às missas.
“As pessoas devem continuar vindo à Igreja e lerem a palavra de Deus”, afirma o santo-amarense, com um sorriso ingênuo, mostrando as marcas que os 69 anos de vida deixaram em seu rosto.
Entre fotos e badaladas dos sinos - que com certeza afetaram a sua audição -, seu Jailton conta que morou no Alto do Saldanha e ainda mora na região, mas não descreveu exatamente a localidade, provavelmente, o barulho dos sinos e a concentração na missa, impediram de entender a minha última pergunta.
Empenhado em anunciar o início da missa, ele toca pontualmente às 19 horas com grande satisfação. O sineiro define sua missão como “um dom maravilhoso que Deus lhe deu”, e garante que pretende permanecer servindo à igreja por muitos anos ainda. Ele trabalhou primeiro na Igreja Nossa Senhora dos Mares, na Cidade Baixa e depois na Igreja de Nossa Senhora Auxiliadora, que faz parte do Colégio Salesiano, no bairro de Nazaré.
Doação e fé
Após tanto soar de sinos, Evalda Araújo Aguiar distribuía os folhetos da missa, na entrada da Igreja. A aposentada, de 66 anos, é de Aracaju e freqüenta a paróquia desde 1984, quando veio morar em Salvador.
Voluntária da igreja, ela faz parte da Pastoral da Família, ajuda nas missas, realiza trabalhos com jovens e também com os crismandos da região. Evalda vai às missas desde criança e não parou mais, mas afirma que hoje em dia as pessoas vão pouco às celebrações e que a Igreja de Brotas já esteve mais cheia.
Questionada sobre a visão que ela tem acerca do templo, diz prontamente: “é lugar que aglutina fé, as pessoas se reúnem porque gostam de estar aqui. As missas já estiveram mais cheias, mas quem é de fé, é de fé!”
Já em clima de fé com o início da celebração, Vilma Glória Santana Silva, que participava do grupo do Encontro de Casais com Cristo da congregação, não pôde me conceder uma entrevista, mas apresentou-me a uma figura ilustre.
Como um verdadeiro anjo, de voz doce e tranqüila, a Irmã Maria Cândida Binotto, que não faz parte da Forania de Nossa Senhora de Brotas, estava na igreja para participar de um casamento que aconteceria logo após a missa.
Irmã Cândida faz parte das Ancilas do Menino Jesus, congregação fundada pela Madre Elena Silvestri, em 1884, na cidade de Veneza, Itália. As ancilas chegaram ao Brasil em 1961. Em Salvador, as primeiras irmãs serviram na segunda igreja mais antiga do país, Igreja de Nossa Senhora da Vitória. Em 49 anos de atuação, as irmãs trabalham com jovens adolescentes de comunidades carentes através de ações de evangelização, educação e transformação.
A missionária nasceu em família católica de uma cidade do interior da Itália. Aos 21 anos, entrou na congregação por “sempre ter sentido vontade de se doar, de ajudar”. Após um apelo do Papa João XXIII às igrejas italianas para ajudar na grande expansão da religião católica no Brasil, mudou-se com apenas 25 anos para o país. Foi morar na paróquia de Brotas, em 1981.
Junto com pároco José Edmilson Macêdo, a Irmã realizou diversos projetos sociais no bairro, a exemplo de escolas de catequese, nas regiões do Candeal Pequeno e no Alto do Saldanha. Além de trabalhar com adolescentes, ensinou também catequese aos adultos. Participou de reuniões de catequistas e educadores das pastorais da paróquia.
“Apesar das críticas e de todas as polêmicas, a Igreja continua se fortalecendo. A vida com Cristo é mesmo de sacrifícios, de sofrimentos, até ele mesmo sofreu quando veio trazer a palavra de Deus”, afirma a missionária que hoje faz parte da congregação de Itapuã.
O Bom Pastor
Enquanto algumas crianças brincam na área externa, dentro da igreja do Senhor Bom Jesus dos Milagres, a missa começa pontualmente, às 17 horas, fechando a tarde do sábado. Distraída, olhando os quadros nas paredes do templo mostram cenas dos últimos dias de Cristo, sou levada de volta à realidade com uma voz aguda, provavelmente uma criança, cantando o salmo responsorial – liturgia que possui um refrão repetido pelos fiéis.
O sermão é sobre o “Bom Pastor”, a importância de estar atento à palavra de Deus, de crescer na dimensão de ser pastor como explica o jovem padre de 30 anos. O pároco Jucimário Santana Santos, cita ainda a importância dos pais orientarem seus filhos – que realmente se adequava ao contexto, com tantas crianças fazendo da igreja, um parque de diversões.
Após a igreja de Nossa Senhora de Brotas, de acordo com o livro “Salvador – Transformações e Permanências”, a do Senhor Bom Jesus dos Milagres foi o segundo registro de manifestação católica no bairro, enquanto ainda era freguesia, aconteceu com a construção da sua capela em 1862, no Matatu. Tornou-se paróquia em novembro 1954, pelo decreto do arcebispo Dom Augusto Álvaro Cardeal.
A Igreja Matriz da paróquia fica localizada na Praça Manoel Quirino, mais conhecida como Largo dos Paranhos. Seis párocos já passaram pela igreja: os freis Hermano José Adams, Marcelino Cantalice, Calisto Busjam, Adimar Colaço e os padres Everaldo Nunes de Oliveira e Jerônimo Santos Silva.
O atual padre da igreja, Jucimário, tem apenas dois meses na paróquia, mas atrai muitos fiéis que lotam as missas. “A comunidade é muito participativa, desenvolvemos projetos com pessoas carentes, como a distribuição de pães de Santo Antônio, todas as terças-feiras”, elogia o pároco.
Mas nem sempre foi assim. Segundo Elton Braga Alves, coordenador do Movimento Eucarístico Jovem (MEJ) na igreja, alguns fiéis se afastaram durante um período em que o padre não era muito acessível.
“A igreja não exerce uma grande influência aqui na região. As pessoas vêm para a igreja ainda por obrigação, e não têm comprometimento com a religião, são poucas que seguem a palavra de Deus”, explica o coordenador.
Elton começou a freqüentar as missas aos 10 anos, junto com seus irmãos e participou de algumas ações sociais que a igreja desenvolve ainda hoje como, visitas às instituições de caridade (creches, asilos). Como coordenador do MEJ, ele incentiva jovens entre 9 e 15 anos a discutirem temas do cotidiano, a partir da visão da religião católica.
Santa Rita
Em uma das 10 subdivisões do bairro de Brotas, na região do Matatu, entre ruas e ladeiras esconde-se a pequena comunidade de Santa Rita. O clima de interior predomina na região de ruas calmas, casas residenciais e pouco comércio. Impossível contar a história desse lugar, sem lembrar diversos momentos que fizeram parte da minha vida. O meu batismo, algumas missas que participei e brincadeiras na casa da minha bisavó.
Católica até no nome, segundo os moradores, a antiga Vila Santa Rita era uma fazenda que pertencia a José Rodrigues Figueiredo, que dá nome a uma das travessas que compõem a região. A capela de Santa Rita de Cássia* foi construída em 1955, a partir da doação do terreno do dono da antiga fazenda da região. Cada morador contribuiu com materiais de construção para erguê-la. O terreno foi doado pelo dono da antiga fazenda da região.
Josefa Helena Santos de Souza, uma das responsáveis pela organização da paróquia, explica que a escolha da padroeira foi uma homenagem a uma antiga moradora que era muito devota da santa. A pequena capela tornou-se matriz em 1972, com o decreto do arcebispo Dom Avelar Brandão Vilela.
A dona-de-casa, Josefa, conhecida como Leu, cresceu na comunidade e antes da construção da capela, freqüentava outras paróquias que fazem parte da Forania de Nossa Senhora de Brotas.
“Desde criança vou à igreja, e amo a minha religião. Sei que Deus é um só, e respeito as outras religiões, a Bíblia deve ser interpretada a partir das crenças de cada um. Aqui é a comunidade que faz a missa, o padre celebra, mas nós organizamos tudo: das músicas até as preces”, detalha Josefa.
Apesar de pequena, com lotação máxima de aproximadamente 50 fiéis por celebração, a igreja tem missas super disputadas, e o local fica pequeno para abrigar tanta gente.
“Vem gente de todos os lugares do país, até devotos do Rio de Janeiro, que vieram pagar promessa aqui, na nossa paróquia. A igreja está sempre cheia, e no dia 22 de maio, a celebração é ainda maior com a festa de Santa Rita”, explica Leu.
O primeiro pároco foi o padre Luiz Carlos Correa da Silva, em 1972, que contribuiu no crescimento da igreja, incentivando as reformas para beneficiar a comunidade local. O atual pároco é o padre José Andrade dos Santos, que está na igreja há seis anos e tem função administradora, já que também faz parte da Paróquia Jesus de Nazaré, na Vila Laura.
*Santa Rita de Cássia nasceu na Itália, teve um casamento muito sofrido e sempre quis dedicar-se à vida religiosa. Após sofrer durante o casamento, teve seu marido morto, e tentou entrar no convento das Irmãs Agostinianas, sendo rejeitada por já ter sido casada. Quando conseguiu entrar no convento, teve um sonho com Santo Agostinho, São Nicolau de Tolentino e São João Batista. Morreu em 22 de maio de 1457. Foi beatificada em 1627 e canonizada em 1900.
Por Amanda Palma
Por Amanda Palma